Um dia, em meio a bagunça dos pratos, panelas, copos, o cheiro do café, vejo pela janela meu filho explorando o quintal.

Tão engraçado ver o jeito que as crianças enxergam as coisas; eu vejo mato, grama falhada e terra seca. Ele chega perto de mim e diz: – Mãe, está vendo esse boneco? O nome dele é Esperto. Você acredita que ele não tem medo de andar na floresta? Eu não dou importância, e sacudo os ombros.

Ele insiste: – Mãe, ele mora numa floresta e sozinho consegue tudo para comer, ele se alimenta de bichos e plantas que a floresta dá, quando quer comer alguma coisa quente, ele faz uma fogueira- e esquenta o jantar.

Interrompo a conversa dizendo: – Vai arrumar essas coisas que já, já eu te chamo para comer.

Volto a minha atividade rotineira, lavar a louça, esvaziar a pia e colocar tudo em seu lugar.

Eis que as preocupações de todos os dias, enchem a minha cabeça. Enquanto tempero a carne e boto a água do arroz para esquentar, volto ao dia anterior.

Recebi uma ligação da minha irmã, preocupada com a família de uma amiga, estavam todos de COVID. Pergunto se ela tem notícias, e ela me pede para esperar um momento.

(Silêncio)

Ela volta ao telefone e relata que a filha de 6 anos, havia pedido um abraço- penso – no meio da ligação, um pedido assim…

Dou risada e volto a temperar a carne e cortar as cebolas.

Olho pela janela, a torneira do quintal está aberta, corro para ver e fechar. E diante de mim, encontro um buraco cavado no chão, cheio de água e com restos de madeira.

Ao que meu filho, explica: – Mãe, choveu muito, o Esperto teve um imprevisto, a casa dele foi inundada, apagou o fogo da fogueira e o rio agora tomou conta de tudo.

Vejo um menino com os pés sujos de lama de quintal, dedos das mãos no mesmo estado.

– Mãe, ele é esperto mesmo, conseguiu cuidar de tudo e ainda salvou os animais.

Respondi: – Menino, vai tirar essa roupa, tomar banho que assim todo sujo, você não pode se sentar à mesa.

Dois minutos depois, aparece a minha filha carregando minha bolsinha de costura, com agulhas e linhas.

Pergunto: O que vai fazer com isso? Ela me diz que reuniu um grupo de amigas da rua e estão fazendo máscaras para distribuir, para quem não tem.

Perguntei: – E vocês vão conseguir o material como?

Ela diz: – Cada uma, está recolhendo tecidos, linhas e agulhas que tem em casa mesmo.

Na hora do almoço, reúno todos para juntos comermos.

Meu marido pergunta: O que fizeram hoje?

Eu me antecipo e respondo: –Traquinagem, ora. Bagunçaram tanta coisa, que não sei nem por onde começar?

Ele insiste: – O que foi que vocês fizeram?

Meu filho reponde: – Só tava brincando, ora, não sabe não, o que é brincar?

E contou para o pai os apuros que Esperto tinha passado, na sua aventura na selva.

O pai dá risada e diz: – Como é bom, né, se sujar na lama? Eu também já brinquei assim.

E meu filho responde: – Bom mesmo é ter um pai.

Olho para o meu marido e vejo seus olhos marejarem.

Enquanto tirava a mesa, percorri novamente aquele dia. Como tenho sido cega e insensível. Tanta coisa para se ver e se fazer, um menino querendo aprender a viver, minha sobrinha querendo um abraço e a minha filha, atenta ao que as outras crianças estão passando.

Dentro de mim uma luz acendeu, olhei para o céu e fiz o meu pedido: – Senhor, que eu veja.

ID: 2020-11-00018
Temática: Preparatório Nacional 2021 – Esperança
Estilo: PodCast
Título: Olhos de Criança
Autora:  Renata Sales de Castro
Data:  30 de novembro de 2020